quarta-feira, 29 de junho de 2011

Desratização



Cheguei em casa certa noite e notei que havia uma notificação da prefeitura em minha caixa de correio. O documento era sobre um mutirão para desratização da cidade. O folheto, bonito bem desenhado, com mensagens que colocariam medo em qualquer roedor que o visse. Ao ler o texto que trazia informações quase apocalípticas, como a proporção de ratos por pessoa na cidade, as doenças e consequências da presença deles e tudo de mais assombroso que se possa imaginar, pensei imediatamente nos barulhos que toda noite ouvia no sótão da casa. Pensei também que estaria livre do incômodo que cessaria definitivamente com a execução do roedor. Cheguei a ameaçar um grito de viva que acabou sendo reprimido pela hora que o relógio apontava... 

Recolhi-me aquela noite em minha escrivaninha e pus-me a escrever meus poemas, como de costume. O velho companheiro de todas as noites agitou-se no alto, sobretudo quando pus a tocar um disco antigo de música argentina, com canções de Carlos Gardel. O barulho de seus passos já não interrompiam meu exercício de escrita, era como se somassem ao êxtase de construção de um poema, um toque de harmonia com todo o ambiente solitário da casa. Pensei num instante, de quase devaneio, que este velho companheiro sempre esteve aqui e me ouviu nas noites frias ou quentes quando declamava meus poemas, chorava minhas dores ou explodia de euforia pelos corredores. O pobre roedor conhecia de trás pra frente meu repertório musical, e quantas vezes cantou comigo Non, Je Ne Regrette Rien, da Edith Piaf sapateando no assoalho! A noite chegou ao fim, deitei tranquilamente em minha cama, após uma breve folheada em um livro do Cortázar e dormi profundamente.


No dia seguinte logo cedo, fui surpreendido com o som da campainha. Era o moço da prefeitura. 
    
- Senhor viemos aplicar em sua casa o veneno para eliminar os roedores.


Olhei para aquele rapaz exterminador. Hesitei por um instante e num ato de coragem disse: 


- Não se preocupe, já assegurei que nesta casa não há nenhum roedor. 

O moço desconfiado afastou-se aos poucos e avançou para a casa vizinha sempre olhando de volta para minha direção esperando que eu o chamasse. Fechei a porta, olhei para o fundo da casa e caminhei vagarosamente para o quarto. Liguei minha antiga vitrola com um velho disco de blues, talvez o preferido do meu amigo roedor que dada a intesidade de suas passadas no teto, parecia me agradecer por ter salvo sua vida.

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